Garotos Cadáver e Mulheres Caixão

Dado tempo o suficiente toda história se torna uma tragédia. Eu misturo bebidas em um bar aleatório até lembrar uma memória boa de nós dois, como nenhuma vem à tona eu continuo a beber. O amigo a minha direita aperta minha coxa; dado tempo o suficiente todos viram abutres. As luzes dessa cidade refletem em meus olhos embriagados, eu fantasio em ser crucificada como se isso de alguma forma fosse me abster de qualquer culpa. Como se isso fosse de alguma forma tirar você dos meus pensamentos. Nenhuma memória me traz saudade mas o pensamento de você ainda me aflige. Chega a ser engraçado.
Eu desço do taxi e cambaleio até a cozinha e cambaleio até o armário de ferramentas e meus pensamentos cambaleiam comigo, nenhum deles é positivo e eu abro o armário, pego o martelo, uma colher de chá e me encaro no reflexo da colher. O reflexo é distorcido enquanto eu tento me fazer pensar que o que eu vejo nele é postivo, ignorando a maquiagem que escorre. Não choro. Lapso de memória; estamos num carro, voltando da Zona Sul da cidade e você está em silêncio, quando fala são pequenas alfinetadas para mim, me pergunto o que eu fiz. Porque sempre é algo que eu fiz, mesmo que não tenha sido, e por isso eu sofro, ao mesmo tempo que sou Eva sou também a Serpente.
Lembro de quando te conheci. Tão vulnerável, meu Deus, eu rezo pra não ser daquele jeito de novo mesmo sem acreditar que alguém escute minhas preces. Lembro de que te vi como minha salvação, lembro de que nosso relacionamento teria um prazo de validade, meu coração um avião em queda livre e eu querendo que você fosse a caixa-preta. Cada vez que penso na versão idealizada de ti que eu criei como o roteiro de um filme de John Hughes. Porque eu amo como uma batida de carros, intensa, perigosa, queria que você estivesse comigo na colisão e que no fim quando o metal pesasse sobre mim fosse você quem me tiraria dos escombros. Dado tempo o suficiente todo amor chega a sua validade.
Fantasio sobre meu funeral, eu em um belo vestido preto, as flores, imagino se você choraria naquela época, imagino se choraria hoje. Dado tempo o suficiente, uma decisão precipitada pode parecer racional. Abro a câmera do telefone, posiciono a colher, pego o martelo, me vejo pela câmera frontal e me pergunto se era assim que você me via nas nossas horas finais, quando eu te beijei e senti o gosto de lágrima que escorria pela bochecha e pousava sobre o lábio. Primeira porrada, sangue esguicha. Segunda porrada, sinto a colher de chá dentro da minha calota craniana. Começo a mexer a colher e meu lóbulo frontal começa a se desmanchar. Desacoplando do resto e com ele toda e qualquer memória de você.